Se os 497 municípios que formam o Rio Grande do Sul fossem peças de dominó que caíssem após registrar a primeira infecção por covid-19, apenas duas ainda estariam de pé: representariam as pequenas Cerro Branco, na Região Central, e Garruchos, no Noroeste.
Passados 213 dias desde que o coronavírus chegou ao Estado em um longínquo e quente fim de fevereiro, são as únicas cidades onde nenhum habitante foi contaminado, conforme dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES).
Em Cerro Branco, próximo a Santa Cruz do Sul, a maior parte da população vive em zona rural e trabalha em plantações de tabaco — portanto, já vivia em distanciamento social antes da pandemia, diz a psicóloga e coordenadora da Atenção Básica do município, Thatiane Siqueira.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a densidade populacional de Cerro Branco é de apenas 28 habitantes/km² – em Porto Alegre, a densidade é de 2.837 hab/km².
— Agora, inicia a época de colheita de fumo, que é a principal fonte de renda do município, então as pessoas ficam ainda mais em casa. Para nós, é grande surpresa ser um dos únicos municípios sem covid, porque não há nada de diferente. Claro, fizemos ações de sensibilização no início: um dos médicos, muito conhecido aqui e com credibilidade muito grande junto à população, saiu em carro de som orientando as pessoas a ficarem em casa — diz Thatiane.
Garruchos adotou política de rastreamento
Em Garruchos, próximo à São Borja, os 2,9 mil habitantes vivem sob regras mais rígidas. Os bares seguem fechados e, para os fiéis, só é possível assistir à missa de dentro do carro. A cidade faz fronteira com a Argentina, em ligação hidroviária — acampamentos de pescadores estão proibidos. A densidade populacional é de somente 4 habitantes/km².
A Secretaria Municipal da Saúde também desenhou uma política de rastreamento: quem passa por uma das três saídas da cidade é parado, tem a temperatura aferida e informa de qual cidade veio e para onde irá. Dias depois, a prefeitura liga para averiguar se apareceu algum sintoma de coronavírus.
Os cuidados para além do estabelecido nas regras estaduais são defendidos com afinco pelo médico aposentado e prefeito de Garruchos, João Carlos Scotto (PP). Ele descarta a dicotomia entre saúde e economia e afirma que “o que favorece o trabalho é a saúde”. Pai de três filhos, ele não recebeu a visita de nenhum desde o início do distanciamento.
— Sou médico por profissão, e médico de família. Sou um defensor da vida, não tenho como fazer diferente. Vidas não se contabilizam em reais. Nosso município é pequeno, tenho três ambulâncias e duas estão quebradas. Meu primeiro hospital de referência está a 90 quilômetros de distância, sendo 60 quilômetros de estrada de chão. Imagina sair correndo buscar vaga de UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Nós estamos vulneráveis, não temos as proteções de grandes centros, e isso nos obriga a tomar medidas de contenção. Temos que fazer medicina preventiva, e não palhaçada. Não adianta combater querendo liberar tudo. Aqui não tem futebol, e ainda tem gente pressionando o governador para colocar torcida em estádio. Isso é um absurdo — afirma.
No geral, cidades pequenas são as últimas a registrarem casos de uma epidemia porque ficam afastadas dos grandes centros, o que reduz a circulação de viajantes, e a população vive espalhada em fazendas distantes entre si, diz o médico e professor de Epidemiologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Jair Ferreira. Mas por que são Cerro Branco e Garruchos, e não outras cidades, são as últimas duas livres de coronavírus?
— Mero acaso. Sempre vai haver duas últimas localidades a serem infectadas em uma pandemia. É pouco relevante para uma população gaúcha de 11,3 milhões habitantes termos dois municípios sem infecção, mas que, somados, têm menos de 8 mil habitantes. Em Porto Alegre mesmo talvez haja um bairro sem casos. As infecções não se distribuem igualmente, ocorrem por focos. No Rio Grande do Sul, começou em Porto Alegre, Lajeado e Passo Fundo. Depois, se espalhou. Mas quanto menos aglomeração, menor o risco. Durante a peste negra, na Idade Média, quem tinha posses fugiu para propriedades rurais, onde a população é mais esparsa. Foi assim que (Giovanni) Boccaccio escreveu Decameron — comenta Ferreira.